Entrevista in�dita com Edgard Navarro, homenageado deste ano

Entre 2010 e 2012, Navarro concedeu duas entrevistas à curadoria da Mostra do Filme Livre, sendo a primeira, sobre seu longa “Eu me Lembro”, exibido na 9ª MFL, na qual recebeu menção honrosa, e a segunda, mais extensa, em que analisa sua filmografia e atesta sua independência em relação às tendências e modismos do cinema contemporâneo.

MFL: A memória evocada de Eu me lembro soa como uma memória coletiva, a memória de uma geração toda, tamanha a força narrativa que tem no filme os acontecimentos, na história do Brasil, se misturando com a h(e)stória de sua infância, adolescência etc. (Será que é isso mesmo?) Pegando emprestado seu título, você se lembra como foi que começou a registrar suas lembranças a ponto de se tornarem o roteiro do filme ?

http://www.mostralivre.com/ Edgard Navarro: Você está certo: no filme os acontecimentos da infância e adolescência de minha geração se imbricam com fatos históricos que sacudiram o Brasil nas décadas de 50 e 60, até meados da década de 70: a ação se localiza, no tempo, entre dois suicídios – o de Getúlio (gesto bombástico de um ditador populista) e o “suicídio” de Herzog, vítima do autoritarismo e arbitrariedade dos ditadores militares. Quanto à segunda parte da pergunta, acho que devo fazer uma digressão mais ou menos longa, porém necessária:

Eu era uma criança muito precoce e curiosa; tinha uma memória detalhista e atenta por natureza. Além disso, meu pai incentivava essa característica que ele tinha como virtude. Uma vez (eu tinha uns 5 pra 6 anos) ele me disse que se eu decorasse um poema ganhava uma nota de 10 cruzeiros (a nota trazia a efígie de Getúlio). Era um poema relativamente extenso pra uma criança daquela idade, mas quando ele chegou do trabalho eu tinha a poesia na ponta da língua. Ele teve que pagar a dívida. Quanto ao processo de elaboração do roteiro, não anotei memórias ao longo da vida. Eu tinha um caderninho onde escrevia impressões, vicissitudes pelas quais passei, reflexões compenetradas sobre como resolver meus problemas (que não eram poucos) e até os da humanidade, numa filantropia exacerbada e ingênua. Quando fui escrever o roteiro do Eu me lembro, comecei por escrever tudo aquilo de que efetivamente me lembrava, de maneira sôfrega e tosca, sem preocupação com o acabamento. Depois fui conversar com alguns irmãos – éramos oito. Eles me ajudaram a compor os quadros da infância (eu era o caçula temporão da família), tinha muita coisa em relação às quais a memória era incompleta ou vaga. Eles me ajudaram muito. Por último fiz a seleção final do material, agora procurando dar contornos atraentes ao drama; que o filme não corresse o risco de se tornar um relato enfadonho. Na primeira versão o roteiro tinha cerca de 160 sequências; a segunda e definitiva ficou com 120, das quais rodamos menos de 90 - e o filme tem 100 minutos! Imagine, se filmasse as 160 iniciais, teria quase o dobro; e 3 horas de filme é demais! Tem uma tirada genial (e me disseram que foi Hitchcock quem saiu com essa): a duração de um filme não deve ser superior ao tempo que uma bexiga humana consegue resistir sem urinar! Embora o próprio Hitchcock tenha feito alguns filmes muito longos (Vertigo, por exemplo), não deixa de ser um parâmetro interessante.

Mas voltando ao tema: na Escola de Teatro aprendi bastante sobre a anatomia do drama e trabalhei no sentido de dar uma finalidade dramatúrgica àquele aglomerado disforme de emoções e fatos, carregando nas tintas, aglutinando personagens, condensando o tempo... Também inventei um pouquinho (algumas vezes muito) pra apimentar a história. Sobre isso de inventar, uma das coisas úteis que aprendi nas aulas de dramaturgia foi que tudo tinha que ser verossímil, passível de acontecer, ou seja: não precisava que fosse verdade, bastava parecer que era... Mesmo porque a história já não era apenas minha – pretendia ser a memória de uma geração inteira... Em suma, o que obtive com Eu me lembro me satisfaz plenamente: o filme é um balanço sincero e comovido, sem medo de parecer piegas; uma confissão de perplexidade diante dos mistérios do ser, uma esperança cândida de redenção, mas eivada de desencanto e angústia; um enredo que ao final não se define, ao contrário, torna-se uma trilha sinuosa e cambiante entre o fel da consciência da morte e o mel da inocência perdida e reencontrada entre cogumelos "estupefacientes", fantasmas e estrelas cadentes...

http://www.mostralivre.com/ MFL: Eu me Lembro dialoga com outro filme de memórias, Alma Corsária, de Carlos Reinchenbach, realizado no início dos anos 90, que não por acaso tem como protagonista Bertrand Duarte, de Superoutro, que você realizou alguns anos antes. Você se considera influenciado de alguma maneira pelo cinema de invenção ou cinema marginal ?

EN : Sem dúvida. Fui e sou fortemente influenciado por ambos - o cinema de invenção e o cinema marginal. Respeito muito o trabalho de Carlão, que considero um dos cineastas mais autorais do Brasil, comprometido eminentemente com suas motivações e inquietações pessoais, embora consiga transitar por temas de fundo social e político. Acho que neste sentido meu cinema se aproxima do que ele faz. No caso do Alma Corsária, creio que se trata de um correspondente paulista pro meu amarcord baiano. Quanto a Bertrand, foi um caso de empatia imediata: quando Carlão viu o Superoutro, gostou tanto do trabalho do ator que disse pra si mesmo: “quero trabalhar com esse cara.” E assim foi. Aliás, há pouco tempo eles voltaram a se encontrar: Bertrand fez uma participação no Falsa loura.

MFL: Aliás, seus primeiros filmes em super-8 dos anos 70/80 também tem uma forte sintonia com o cinema de invenção. Como esta sua geração, na Bahia, dialogava com o cinema da Boca do Lixo ?

EN: Não posso falar por meus companheiros de geração; mas quanto a mim, não tive maior aproximação com o cinema da Boca do Lixo, embora nossa estética guarde muitas semelhanças entre si; não foi uma coisa espelhada, porque na época eu não conhecia nada do que estava sendo feito pelos adoráveis malucos da Boca. Conheci Jairo Ferreira(cinéfilo e crítico ligado aos cineastas que integravam o movimento) apenas em 1977, durante a Jornada de Cinema da Bahia. Naquele ano eu apresentei O Rei do cagaço, que ele definiu como sendo “a maior explosão fílmica dos últimos anos, em qualquer Bitola”. No ano seguinte, dei um depoimento pra um filme que ele estava fazendo em super-8, cujo resultado final só viria a público em dvd através de um resgate feito pelo cineasta Paulo Sacramento, há pouco tempo atrás. Em suma, nessa época eu não dialogava com o cinema da Boca.

MFL: Como você se situa dentro do cinema baiano e do cinema brasileiro contemporâneo?

EN: Sempre fui adepto de muita independência e espontaneidade na criação, sem detrimento do ambiente de camaradagem e amizade que penso que deve reinar entre nós que fazemos cinema, atividade eminentemente de equipe. Não abro mão de minha individualidade na hora de criar e acho que isso é muito saudável, permite que as diversas manifestações sejam fiéis e desencoraja o atrelamento que às vezes pode travar o fluxo criativo dentro de um grupo. Acho que novos grupos de cineastas que estão surgindo no presente estão atentos pra esse requisito da originalidade e, seja na Bahia ou em qualquer outro lugar, o resultado sempre se mostra eficaz e positivo. Quanto a como me situo no panorama cinematográfico contemporâneo, acho que tenho seguido meu próprio caminho, só faço os filmes nos quais acredito, sem procurar (pelo menos conscientemente) esta ou aquela tendência estética ou temática; isso me dá a certeza de que tenho cumprido a contento meu desígnio como cineasta e como pessoa.

MFL: Fale um pouco do processo de criação e produção de “Superoutro”. Como o filme foi recebido na época?

EN: Superoutro estreou em janeiro de 89, no Cine Teatro Maria Bethânia. Provocou reações diversas, a maioria ficou fã logo de cara, apesar de manifestar um certo estranhamento; havendo aqueles que ficaram francamente constrangidos, achando que o filme não precisava ir tão longe (nas cenas de escatologia, por exemplo). Hoje boa parte dos que torceram o nariz pra essa atitude contrária ao ‘bom tom’ se põem aberta e entusiasticamente a favor do filme; conto com isso pra o futuro de meu último filme, cuja reação primeira também foi de certa rejeição. Dentro de minha obra, entretanto, acho que Superoutro talvez nunca seja superado em termos de sua adesão e empatia absolutas do espectador à personagem. Quanto ao processo de criação e produção, posso dizer que foi cheio de percalços e situações hilárias, sendo que a tônica foi o fato de que equipe e elenco vestiram a camisa e deram tudo de si pra obtermos o belo resultado que obtivemos; a eles serei eternamente grato.

MFL: Sobre seu novo longa, O homem que não dormia, você comentou em entrevistas que “ouviu vozes, fenômenos do inconsciente” , e que “o filme quis se fazer assim”. Você poderia comentar este processo, como foi ficar entre a realização de um filme com orçamento, filmado em 35mm, com uma equipe grande e muitas responsabilidades (tanto do ponto de vista da produção como estéticos), e ao mesmo tempo, dar a voz a vez ao invisível, ao “inconsciente”?

EN: Vamos lá: isso de ‘ouvir vozes’ nunca foi novidade em meu processo criativo. Desde os primeiros filmes, era acometido por fortes intuições que beiravam a ‘loucura’, embora felizmente (não tenho certeza), tenha permanecido do lado de cá e sou tido como são. Mas os surtos criativos, febres, insônias, dilemas que pareciam insolúveis, etc, sempre fizeram parte de minha vida. Dei espaço a todas essas manifestações numa tentativa muito consciente de estabilizar minha psique, equalizar o sistema de forma que fosse satisfatória para deuses e diabos que me assediavam. Não posso explicar como isto se dá, seria como falar de cores para daltônicos; o que sei é que quem viveu uma tormenta criativa, em que todos os elementos da ficção estão imbricados com a realidade do ‘cavalo’ da criação (criação que a partir de certo momento começa a ter vida própria…) quem viveu isso sabe do que estou falando; sabe que essa é a única forma de levar o barco desde a beira de um naufrágio iminente a porto quase seguro; pelo menos até a próxima tormenta... Agora pense: num cenário como esse, dá pra pensar em tantos itens de orçamento e outras papeladas? Tem que dar; e nós conseguimos – falo do auxílio luxuoso de nosso elenco e equipe, além da empresa produtora, é claro.
 

Entrevista concedida a Chico Serra, curador da Mostra do Flme Livre

 







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