Confira a cobertura da MFL 2011 feita pela revista online FILMES POLVO

A revista online FILMES POLVO, através de João Toledo, convidado especial da MFL, uma cobertura com diversos textos inéditos sobre o evento, suas sessões e seus filmes. Confira abaixo um pouco e  AQUI  o restante de tal cobertura!

 

Primeira sessão (por João Toledo)

Dia 16 de março de 2011. Chegando à Mostra do Filme Livre, a propósito da primeira sessão do dia: uma série de curtas me revela aquilo que talvez seja a essência e principal vocação da mostra. Talvez a revelação se dê justamente por se tratar de uma sessão retrospectiva – Retrô 2 –, que evidencia ali o trajeto temporal do festival, que agora completa 10 anos. Em meio a uma série de filmes quase punks, que partem da precariedade técnica enquanto recurso expressivo, e que em muitos casos tratam da violência com uma brutalidade crua própria do vídeo, o que se vê, sobretudo, é um interesse por questionar o “instituído”. Seja ele o paradigma político da Bahia (O Fim do Homem Cordial), seja a guerra do Iraque ou da guerra enquanto espetáculo (Está Lá, É do Inimigo? /No a La Guerra), seja o olhar da população para o cinema brasileiro (Alguém Tem Que Honrar Essa Derrota!), seja a atitude burguesa do Brasil dos anos 80 (Punk Molotov).

Mas o interessante mesmo é que, independente das potências de cada proposta – e há várias em cada filme –, há ali uma clara aposta da curadoria no risco enquanto essência de um cinema que está buscando se encontrar. São filmes desiguais, e muitas vezes questionáveis – algumas vezes são politicamente ingênuos, outras vezes marcados por uma afetação desconstrutiva que não chega a potencializar nada, e às vezes afeitos a uma vontade de se alinhar a certas tradições, emulando estéticas, como a do cinema marginal. Mas eram sementes de um cinema de risco, que hoje encontra muito mais maturidade e complexidade.

A Mostra do Filme Livre, nesse sentido, colhe hoje as sementes do que ajudou a plantar, mostra hoje o cinema que ajudou a formar. Ajudaram a apontar para outros caminhos enquanto o circuito de festivais – à exceção de alguns poucos, como o Cine Esquema Novo – ainda era extremamente conservador e limitado. Daí a real riqueza do contraste entre as sessões retrospectivas e as sessões da seleção deste ano. Pois dá a ver toda a trajetória de um certo cinema brasileiro. E um “certo” que na verdade são muitos – mas que têm em comum esse mergulho alucinado no impossível cinema brasileiro, nas entranhas de uma linguagem por descobrir.

 

Sessões panorâmicas

Dentro das sessões “Panorama” (aquelas que comportam a seleção oficial deste ano) há uma série de filmes extremamente fortes, mas o projeto de deixar em cada sessão uma amostra da diversidade que compõe o atual panorama do cinema brasileiro talvez ajude a sufocar a individualidade, ao invés de potencializá-la. Isso porque a transição brusca entre filmes tão distintos não é absorvida com tanta tranqüilidade pelos espectadores. Um filme acessível de comédia pode matar um subseqüente filme contemplativo, singelo e obscuro. Nesse sentido, alguns filmes ficam eclipsados em meio às sessões às vezes longas. No programa 3, alguns destaques claros são o brilhante A Amiga Americana, o estranhíssimo Visita, o alucinado O Assassino do Bem e o forte Eu, Turista.

Visita é certamente precário do ponto de vista técnico-formal, e também chega a ser mal filmado, mas esse registro revela muito da espontaneidade e da intimidade que essa imagem guarda. Filma-se, sobretudo, a relação entre uma mãe e seu filho, um jovem adulto, que convivem em um apartamento apertado do Rio. Da perspectiva da diretora, nos sentimos como o quarto membro dessa família, observadores de um cotidiano comum, de uma realidade muito próxima. Somos guiados por essa experiência até que ela seja subitamente abortada, sem que muito se explique sobre a origem e destino daqueles conflitos mostrados. O humor e a estranheza de certas situações e conversas que presenciamos são uma interessante forma de compor umaa relação, no fundo, marcada por angústias e frustrações diversas, e que perpetuam no vácuo que o fim do filme nos deixa.

Já O Assassino do Bem é um filme essencial. Trata-se de um filme que poderia muito bem se perder no limbo ingrato das obras consideradas sem rigor, e morrer como uma experiência estética que funciona tão somente no âmbito da internet. E, no entanto, trata-se de um filme que se volta para o fenômeno audiovisual de uma maneira mais ampla para discutir nossa relação com as imagens hoje. É um filme extremamente crítico e bem articulado enquanto linguagem, que absorve como uma esponja infindável esse novo regime de imagens que marca hoje nossa relação com o mundo. E sai para as ruas, com seu matador bizarro, para acabar com o lixo que se perpetua a partir dos nossos referenciais imagéticos.

Em Eu Turista, Guto Parente dá prosseguimento a certas questões que permeavam o incrível documentário de ficção científica Flash Happy Society. Aqui, ao invés de manter esse olhar externo para a experiência alheia, ele próprio se inclui nos questionamentos que faz a respeito da experiência mediada pela imagem. Porque, se há uma experiência turística extremamente achatada, banalizada, condicionada social e culturalmente, que tem seu trunfo na produção dessas imagens enquanto símbolos da vivência adquirida, há também o turismo de Guto, que passa pela necessidade de transformar esse olhar e essa crítica em imagens, em buscar articular dentro disso um discurso. A vivência turística plena também não se dá para ele senão pelo filtro estético. Somos todos reféns de nossas formas de experimentar o mundo através do olhar – somos todos cyborgs, nossas câmeras são extensões do nosso olhar; vertovianamente, nosso olhar recorta a realidade, e a projeta de volta no mundo. Não se trata tão somente de uma crítica à produção de imagens em si, mas principalmente de uma reflexão sobre nossa experiência no mundo. O olhar pensa, e é preciso pensar o olhar.

Na sessão Panorama 4, mais uma vez a disparidade entre os filmes criou faíscas entre uma e outra exibições. Mas, ainda assim, algumas experiências fortes surgiram – bem como outras frustrantes. Projeto Silêncio e Caos já foram tratados pela revista em outras coberturas (ver em Arquivo: MFL), portanto focaremos a análise em outros filmes. O curta-metragem José de alguma forma me lembrou o filme de Guile Martins, Canoa Quebrada, exibido na Mostra de Tiradentes em janeiro deste ano. Em Canoa Quebrada há um mergulho bastante radical em uma experiência íntima que leva o filme a um espaço muito potente e complexo, sendo afetivo sem nunca ser piegas, sendo contraditório sem precisar verbalizar as evidentes buscas e angústias que marcam a experiência. Um grande filme. José seria o oposto. Trata-se, claramente, de um filme que parte também de uma experiência afetiva e íntima. No entanto, uma certa aura de solenidade, quase como o tema fosse um tanto quanto intocável, efetivamente nos distanciam do afeto. O filme trata de uma despedida, de uma morte, mas o olhar sensível para o acontecimento se sobressai sempre ao acontecimento. Esse olhar chama atenção para si, e se ampara em uma ternura esteticamente genérica. Incrível como um filme sobre um momento tão forte e marcante pode passar tão incólume.

A Cabra, de Gui Castor, apesar de conter vários momentos muito interessantes, sobretudo no que tange às experimentações de sons em choque com as imagens, apresenta um mal-estar poético que tente sempre a se esvaziar em um pessimismo meio sem rumo. Há estratégias quase lynchianas no tipo de encenação proposta, mas o que se perde em relação às angústias que vemos no cinema de Lynch é o contato com o mundo, são as setas que nos permitem vislumbrar um fundo para o terror que seus personagens vivem. Sem esse contato, o terror parece simplesmente imposto; o mal-estar, forjado.

Em O Som do Tempo, de Petrus Cariry, há um momento de virada fundamental. Porque ele se inicia como o típico filme sertanejo, e caminha por esse terreno cansado por vários minutos, até nos surpreender com a presença inesperada da cidade ao redor. No entanto, o ponto de virada do filme não o redime do olhar poético genérico sobre esse mundo. Até porque o surgimento da cidade como contraponto ao universo paralelo de dona Maria só serve para reforçar uma espécie de resistência daquela mulher, daquela realidade, daquele tempo – e, consequentemente, de resistência dessa estética, desse olhar instituído para o mundo rural, que recorta ações do cotidiano com fetiche plástico, que nos oferece as mesmas imagens como se a longa duração de um plano necessariamente revelasse dados ocultos sobre a condição humana. E, mais do que isso, o surgimento inesperado da cidade, com seus sons agressivos, sé faz reforçar uma dicotomia um tanto ingênua, distanciando ainda mais esses dois mundos como se representassem duas estéticas díspares – como se elas não pudessem se contaminar mutuamente.

O Mundo É Belo, de Luiz Pretti. Pode se dizer que seja ingênuo, talvez. Pode-se afirmar também que seu deslumbre seja quase juvenil. No entanto, trata-se justamente disso, pois a ingenuidade juvenil do filme é muito verdadeira e verdadeiramente tocante. A voz embargada revela uma paixão muito sincera pelo gesto de olhar, não importa como. O filme desloca a idéia beleza de seu espaço seguro, e a recoloca em seu devido lugar. A beleza está no olhar (enquanto ato, atitude), nas possibilidades e nas surpresas que nos oferecem cada suporte, cada meio. A incrível imagem do sol rasgando o plano ao meio com uma faixa de luz rosa é potência pura. De uma imagem fotográfica ao grafismo inesperado que dança para a trilha sonora. Um filme que respira com a ternura e o deslumbre de um jovem apaixonado.

 

 

* Vistos na 10ª Mostra do Filme Livre

 

Filmes citados:

O Fim do Homem Cordial (2004/Daniel Lisboa)

Está Lá, É do Inimigo? (2003/Pedro Lobito)

No a La Guerra (2003/Matias Maxx)

Alguém Tem que Honrar Essa Derrota! (2009/Leonardo Esteves)

Punk Molotov (1984/João Carlos Rodrigues)

A Amiga Americana (2009/Ricardo Pretti, Ivo Lopes Araújo)

Visita (2010/Tamíris Spinelli)

Flash Happy Society (2009/Guto Parente)

Eu, Turista (2010/Guto Parente)

O Assassino do Bem (2010/Tiago Pedroso, Hiro Ishikawa)

Projeto Silêncio (2010/Bruno Caticha)

Caos (2010/Fábio Baldo)

José (2010/Tais Vasconcelos)

Canoa Quebrada (2010/Guile Martins)

A Cabra (2010/Gui Castor)

O Som do Tempo (2010/Petrus Cariry)

O Mundo é Belo (2010/Luiz Pretti)

 







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