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Resenhas

Com alegria publicamos aqui as resenhas feitas pelo parceiro Daniel Cuenca, sobre os 10 filmes que exibimos este ano em Boston, no Brazilian Free Spirit Film Festival, cuja programa��o pode ser vista aqui.

Daniel Cuenca graduou-se na Universidade de Massachusetts Amherst com um BA em Ensino de Ingl�s e Espanhol e recebeu seu Mestrado em Literaturas Hisp�nica no Boston College. Seus principais interesses de pesquisa est�o na interse��o da arte e da pol�tica, centrando-se especificamente na pol�tica do discurso est�tico e nas diversas narrativas de diferencia��o cultural, com foco na representa��o inter-social e interculturais na literatura e no cinema contempor�neo de l�ngua espanhola e uma �nfase particular na Argentina e no Uruguai. �reas de pesquisa relacionadas incluem g�nero e teoria Queer, estudos de fronteira, filosofia de arte e teoria liter�ria e cinematogr�fica. dcuenca@bu.edu


Longas�(Na ordem em que foram exibidos)

N�o me fale sobre recome�os, Arthur Tuoto (2016)

O filme de Tuoto � um ensaio imag�tico que indaga sobre quest�es hist�rico-politicas da arte. N�o me fale sobre recome�os p�e em di�logo um vasto cat�logo de imagens que de maneira coletiva operam a m�quina argumentativa de tal empresa.

Entretanto, as rela��es argumentativas tra�adas entre as diversas imagens n�o � de car�ter linear ou l�gico-formal, mas segue a l�gica das imagens na era do espet�culo.

Os retalhos do material encontrado dialogam entre a intertextualidade fluida e a narrativa da montagem. Imediatamente pensamos em Guy Debord e a t�cnica do d�tournement. Cada uma dessas imagens � uma pe�a roubada de outra constru��o sem�ntica, talvez contr�ria. Arrancada do contexto primeiro, cada pe�a liberada ganha uma nova vida e a possibilidade de se rebelar contra sua matriz nativa, contradizendo e contestando. Tuoto consegue dizer muito sem dizer nada de novo.

Este n�o � um ensaio de �nica-tese. No espet�culo das imagens apropriadas, esse mesmo espet�culo de resignifica��o � eternamente m�vel, inestabiliz�vel. As recontextualiza��es mudam e se reformam com cada leitura, abrindo possibilidades de leituras infinitas. Pensando mais uma vez em Guy Debord, o ensaio imag�tico de N�o me fale... se assemelha ao exerc�cio de ler as teses enumeradas em A sociedade do espet�culo utilizando-se do m�todo elaborado no O jogo da amarelinha de Cort�zar. A argumenta��o n�o tem centro gravitacional, ou talvez tenham uma multiplicidade de centros em movimento e muta��o.

O cine-ensaio aborda argumentos t�o importantes como a mem�ria (ou mem�rias), o dueto recorda��o / esquecimento, a arte moderna que ret�m os �mpetos pr�-emancipados da arte religiosa, as brands que s�o a cara do capitalismo, e a realidade versus simulacro / performance. Mas o filme n�o pretende fechar a quest�o com respostas finais. Pelo contr�rio, rompendo a l�gica convencional hist�rica e discursiva, acaba oferecendo como �nica conclus�o a instabilidade perpetua como status quo de um sistema que se define com cada mudan�a referente ao ponto de contempla��o.

� particularmente not�vel a maneira pela qual o texto p�e em di�logo n�o s� uma diversidade� imposs�vel de imagens inicialmente alheias umas �s outras, mas tamb�m distintos n�veis imag�ticos: abundantes quadros pretos verbais se acorrentam pluridimensionalmente a registros de videogame, not�cias, e �udio de entrevistas. Mediante essa libera��o e reciclagem de fragmentos, o ensaio consegue finalmente diminuir a delicada gravidade interna da no��o de remembering: re-member, take apart the member pieces and re-order them, re-member them.

Efetivamente, there�s too much memory in this world, to forgive is to forget, to reconcile we must forget; memory as an ethical act, our only link to the dead, involves re-membering pieces torn out of their seeds. N�o me fale, pois, de recome�os.


Muito rom�ntico, Melissa Dullius, Gustavo Jahn (2016)

Aquele mar de rumo incerto no qual se lan�am Gustavo e Melissa entre cont�ineres, sua humanidade tranquilamente presa entre mar azul e metal laranja, constitui o grande foreshadowing do seu percurso art�stico. Pois a explora��o de caminhos art�sticos � para eles precisamente isso: a negocia��o vital e vital�cia entre sensibilidade humana, material art�stico e os vaiv�ns de um mar por sempre subjacente. Muito rom�ntico (2016) � um exerc�cio meta-autobiogr�fico de uma dupla artista que n�o pode, por�m, evitar ser simultaneamente uma pondera��o meta-art�stica. O document�rio � uma explora��o da pr�xis est�tica, da memoria, e das texturas mais variadas.

Dominado pelo formato 16mm e um celuloide que contesta, Muito rom�ntico vai formando um cat�logo generoso de materiais de estampado art�stico. Como essa colcha de retalhos, que n�o representa nada al�m da experi�ncia feita memoria imbricada no tecido. O filme �, pois, uma hist�ria da inscri��o do tempo e viv�ncia na mat�ria, que n�o e outra coisa que a labor mesma da arte. Assim como essa colcha que surge de retalhos n�o � referente de nada externo nem pr�vio, mas acolho de tempo e vida com mem�ria de �gua, a explora��o art�stica de Gustavo e Melissa � o esfor�o permanente de inscrever sua humanidade num material que se resiste, que devolve, que modifica. N�o h� tela inocente; n�o existe o blank canvas. O material art�stico recusa, tinge, rejeita, muda, nega, amplifica, enriquece a experi�ncia que tentamos gravar intacta nele. O celuloide velho, o papel de parede, o cinemat�grafo insertam cor, densidade e velocidades no cora��o da mem�ria que depositamos sobre eles.

Muito rom�ntico � tamb�m uma hist�ria de buracos. Buracos na tela, na parede, no tijolo. Na ecologia vertiginosa de Berlim, nem as ruinas persistem. A constru��o gentrificante amea�a em cada esquina. O imperativo � ocupar esses buracos fugazes, conquista-los antes deles virarem �pr�dios onde jamais entraremos�, buracos preenchidos com a velocidade esmagadora da modernidade. � a procura de viver nos intervalos, nos stills, como o tempo-espa�o, como o cinema.�

Se trata de cravar nossa humanidade na pedra: na tela, no concreto. Se trata de ocupar buracos: nos tecidos, no tijolo, na parede. O buraco preto no apartamento � aquele canal que penetra a tela. Mas a tela responde: j� no final do filme olha para a Melissa e o Gustavo desde dentro, os contempla enquanto o cinematografo re-forma, ou de-forma suas mem�rias de mar reduzindo � velocidade dos instantes, esticando o som, transformando as cores na cena final.

Frente a um celuloide que reclama autonomia, talvez at� estragado, flui o ritmo do mar que jamais abandona o casal. Gustavo e Melissa oscilam em p�, se balan�am em redes azuis, se mergulham em profundidades on�ricas de cores vermelha e anil. Por fora, v�o passando as esta��es: ritmos da natureza que permanecem debaixo das velocidades caprichosas do cinemat�grafo e do turbilh�o urbanizador da modernidade da cidade. Nada mais flui obediente. Nem mesmo o tempo, que vai e volta sem reparos. Pouco neste filme se rende ao sequenciamento.�

Confiamos a colagem ca�tica e pluritextual da nossa mem�ria � meteria que envelhece e se distorce. Escondemos nossos segredos entre fios de um tecidos que se deforma com cada onda. Fora de mat�ria, como todos seus caprichos e rebeldias, n�o tem nada, e o artista o sabe.


Xale, Douglas Soares (2016)

Talvez como reflexo da problem�tica b�sica abordada pelo filme, � dif�cil descrever a identidade narrativa da c�mera em Xale. O filme poderia ser entendido como um �v�deo-di�rio (n�o um vlog) documental de c�mera no ombro�. A c�mera adota aqui o olho curioso e complexo que gravita entre uma narra��o em primeira pessoa e um protagonista narrador. Efetivamente, a c�mera acompanha o neto na sua viajem de volta � Arm�nia ancestral. Como bem esperar�amos de uma narra��o em primeira pessoa, a c�mera n�o � omnisciente; mas ela tamb�m n�o � �razoavelmente onividente�, ou seja, ela n�o v� tudo o que esperar�amos que visse o olho do protagonista: �s vezes essa c�mera cai, se vira, se atrasa, se distrai. Outras vezes aparece um narrador externo, seja na cena �ntima na Arm�nia com o �garoto tradutor� ou no apartamento da av�.

�Where is Brazil?� � uma pergunta interessante para um homem que veio procurando a Arm�nia. O percorrido pela cidade a procura da embaixada constitui um dos exemplos mais estendidos da c�mera-olho- protagonista, incluindo as conversas por FaceTime com a av�. Uma das t�cnicas mais sobressalentes do filme � o uso do que poder�amos chamar camera drop: a c�mera na m�o que parece cair de prop�sito no final de uma cena. Este drop vem as vezes acompanhado da filmadora novamente ligada saindo do xale, enxergando atrav�s da trama do abrigo. Mas h� tamb�m registros fotogr�ficos, velhos e novos, fotos que se superp�em sobre um pano de fundo real, fotos novas que acabam no Facebook, e uma cena maravilhosa de um cigarro que brinca de queimar buracos na realidade visual como se fosse papel.

Xale � uma hist�ria das mem�rias que perseguimos e nos abandonam. A mem�ria procurada no futuro: uma viajem planejada para resgatar o passado em fotografias e filmagens. Ao mesmo tempo, a portadora da mem�ria antiga, nativa, vai sucumbindo ao Alzheimer: �ela esquece a memoria recente, n�o do passado� e ademais n�o acredita nos tempos abstratos: o passado transcorrido ou o futuro n�o acontecido � s� existe presente. No fundo, h� uma pesquisa sobre a cria��o do testemunho memorial: a av� que perde as mem�rias ou as nega, o assunto da tradu��o (do arm�nio) mediada por sexo, atrav�s de um garoto, e um xale fetichizado, mas de conte�do duvidoso, como o �nico companheiro de viagem. No final, uma reflex�o sobre os sil�ncios intencionais de quem poderia providenciar o testemunho. E nos �ltimos quadros, as placas de resson�ncia magn�tica de uma testemunha que vai perdendo as recorda��es � literal e materialmente.


Curtas

Luiza, Caio Ba� (2016)

Atrav�s de um cap�tulo da sexualidade da Luiza como marco situacional, a curta-metragem de Caio Ba� (2016) examina a rela��es de uma mulher com defici�ncia com seu c�rculo de refer�ncia imediato. Qualquer semelhan�a de cotidianidade que poderia ser associada com o entorno familiar e rom�ntico aparece constantemente circundado por um gaze ansioso que domina o ritmo peculiar deste filme. A narrativa adota uma din�mica que poder�amos denominar de �entrevistas observadas�: solicita��es que se originam de entrevistadores �s vezes ocultos, outras vezes presentes, at� ocasionalmente de conversas gravadas e reproduzidas sobre imagens posteriores.

Chama a aten��o a multiplicidade de cortes e de c�meras por tomada. Esta troca nervosa de olho formaliza as inquietudes de um olho que vigia preocupado, apressurado, cada vez mais desesperado frente ao desenvolvimento inevit�vel da hist�ria sexual de Luiza com seu namorado. Todos se afligem, conversam, perguntam, confabulam e sentem-se paralisados pela vergonha ou o pudor enquanto Luiza e seu namorado avan�am no processo de intimidade sexual. Sob as conversas e apela��es � castidade, escorre uma procura de impedimento do direito reprodutivo com fundamento na defici�ncia dos afetados. A defici�ncia intelectual � efetivamente medicalizada com propostas que v�o da p�lula anticoncepcional � vasectomia. A pressa � o acontecimento iminente da rela��o sexual entre os namorados com potencial de gravidez (�o acidente�), e a urg�ncia � a supostaincapacidade da Luiza de criar um crian�a: pessoa com certa defici�ncia n�o deve se reproduzir. O limite do esfor�o coletivo � de car�ter meramente m�dico (a p�lula n�o deu certo) ou patriarcal (o pai acha absurdo fazer cirurgia nela; a m�e n�o consegue falar de vasectomia com os pais do namorado). A discuss�o contorna ent�o qualquer quest�o da autonomia em favor de uma corrida preventiva que exclui a protagonista.

Luiza negocia sua intimidade atrav�s da aten��o coletiva com um certo gr�o de atordoamento que talvez a salve: the daze in the gaze. Os sil�ncios not�veis que acompanham certos close-ups da protagonista se op�em aos murmurinhos constantes que a rodeiam. O olho que vigia � diverso, esmagador, incans�vel �, talvez, um pouco m�rbido. Al�m da manipula��o irrefletida e da infantiliza��o dos adultos com defici�ncia, a soletra��o da informa��o parece exibir uma certo componente de morbidez. As penetra��es constantes na intimidade de Luiza, sejam por meio da entrevista ou do interrogat�rio mais insistente, parecem exceder as necessidades preventivas. Este excesso � particularmente evidente na conversa com a av� que tem lugar no final. As procura de detalhes perif�ricos por parte da av� chama aten��o por seu car�ter insistente e invasivo. N�o conforme com a primeira vez, a av� repete a pergunta: �Como foi fazer sexo?�; �Como � que foi?�. E � aqui, precisamente, que Luiza ensaia sua primeira defesa: �Foi isso, v� - n�o tenho mais para contar, acabe. Frente a insist�ncia da av�, Luiza emprega a ultima linha de defesa frente � interroga��o invasiva, uma estrat�gia que lhe concede um espa�o de liberdade frente � solicita��o implac�vel do testemunho: a mentira.�


Br�colis, Valentina Homem (2016)

Qual o problema com as crian�as?

-N�o podem morar neste apartamento.

� por causa das leis. Grades nas janelas e essas coisas.

Assinamos o contrato de aluguel?


Essa retic�ncia em assinar o contrato � o pouco que emerge: quanto ao resto, h� apenas sonho, sono e vazio. A consci�ncia de Noa flui � perdi��o da mem�ria, se distraindo obsessivamente com as mesmas lembran�as. � um corpo presente que responde a movimentos do passado, sempre rememorando um bambol�, aquele dia passado com ela, com o anjinho. Fora disso, � apenas contemplar o vazio. O bambol� que se aproxima do perigo. A �gua volta j� na banheira, uma ta�a de vinho que finalmente se deixa derramar.


A prop�sito de Willer, Priscyla Bettim, Renato Coelho (2016)

Poder�amos dizer que este filme � uma homenagem � Claudio Willer em seus pr�prios termos. Mais precisamente, o document�rio experimental de Bettim e Coelho se inserta na ecologia perceptual do poeta, transportando a audi�ncia atrav�s de uma viagem por paisagens crepusculares de toques surrealistas que talvez hajam constitu�do boa parte do universo criativo do artista. � portanto um assomo hipot�tico com uma c�mera que tenta adotar o olhar do poeta em primeira pessoa, mas sem reclamar autoridade biogr�fica. Ao contr�rio, a c�mera cal�a os sapatos de Willer como uma tese: assim pode caminhar e vivenciar essas ruas com o poeta.

De certo modo, o filme tem resson�ncias do conto �Avenida de Mayo-Diagonal-Avenida de Mayo�, do poeta uruguaio Juan Carlos Onetti. Publicado em Buenos Aires em 1933, o conto consiste do fluxo de consci�ncia de um caminhante urbano que deambula pela geografia urbana entre pensamentos, lembran�as, e os est�mulos v�rios de uma cidade moderna que � ao mesmo tempo o local de tudo e de nada. A c�mera biogr�fica auto-hipot�tica deste document�rio nos leva num passeio parecido seguindo os passos de um Willer-flan�ur que se deixa perder pelas esquinas mas que tamb�m consegue sair do ambiente urbano para pegar aquela baforada de ar fresco. Entre retalhos de testemunhos e colagens de poemas e imagens, vamos participando n�o da historia cronol�gica da vida do poeta, mas da sua biografia sens�vel. E a�, de repente, Willer levanta o olhar e pergunta: �qual � a rela��o entre cinema e poesia?�


Hotel Cidade Alta, Vitor Graize (2016)

Acontece que muitas vezes � assim: sozinho numa casa que o ignora, o homem vira um garoto na procura de um colo. Tr�s desconhecidos pouco mais do que justapostos num hotel antigo cheio de des�dia. Quartos nus, escuros, cheios de perguntas que se perdem nos ecos do desapego. Paredes calejadas que s� ignoram, depositando sequid�o na garganta dos homens.

� dif�cil ser ouvido nesse hotel. As perguntas abundam, mais cada um parece lan�ar seus vazios interrogat�rios numa dire��o obliqua, cega ao interlocutor. Como criar vida numa ecologia t�o in�spita? Como sustentar vida nessa arquitetura morta? Hotel Cidade Alta � uma historia de vozes. Vozes perdidas em quartos, ignoradas pelo concreto, cruzadas sem que se escutem umas a outras, velhas, novas, de baixo, de fora. Os tr�s homens v�o se encontrando sem se ver, muito menos se responder. Todos eles cheios de perguntas e obsess�es: quando o senhor chegou? Passou pela recep��o? Como o senhor pode ficar nessa escurid�o? Falam e riem s�s.

E por fora se agrupam as vozes repetitivas, irrefletidas, mon�tonas, mecanizadas pela prociss�o. O homem atravessa a massa, uma palavra a cada passo, conjurando os fantasmas que habitavam a pra�a. Ningu�m o ouve. Ele n�o existe.

Nessa massa religiosa s� h� a voz que agrega, n�o a que destoa. Enquanto o caminhante convoca as vozes dos escravos, sem sucesso do lado de fora, o homem de dentro acorda a mem�ria embalsamada em di�rio: �Escrevo lembrando dos bons passados�. A memoria escrita, agora refugio de quem n�o mais sai ou vive, de quem abandonou a rua e apenas repete uma hist�ria de exist�ncia que est� fechada num corol�rio suspenso no crep�sculo da vida.

Mortos massificados em prociss�o, mortos vivos no hotel, fantasmas, n�o homens, seres imateriais que n�o se v�m, cada um deles falando sozinho, esbarrando-se todos como se fossem esp�ritos, pendurados na sacada do �Cidade Alta�, que tem nome de cemit�rio.